PARALELO - CUBO
por Nuno Lopes (escritor convidado)
Com um ranger metálico e o duro impacto de borracha em pavimento molhado, Tiago saltou a cerca e aterrou na viela escura, correndo ofegante com o cubo preto na mão.
“Foda-se, esta foi à justa.” - exclamou para ninguém “L.A.R.A., recon mode on. Ponto de situação.”
Do seu braço direito, um som eletrónico e duas luzes verdes fazem a bracelete que emprega ganhar vida. “Light Auxiliary Recon Assistant engaged. Assessing.” - ouviu do auricular que trazia no seu ouvido esquerdo.
Ainda correndo viela abaixo, quase a chegar à rua principal, Tiago é parado subitamente pela voz que o acompanhava agora. “Tiago, patrulha da PSP às 2 horas. Recomendo paragem de 37.3 segundos e escape à tua esquerda. A 130 metros, rua com vasta movimentação noturna. Protocolo mingle-and-wait recomendado – frequências indicam reforço policial na área durante as próximas horas.”
“Ativa o modo civil, L.A.R.A.” – ao comando da sua voz, as roupas pretas de Tiago, de estilo quase militarista, como que rejuvenescem, num rápido tremor de pequenas luzes, dando lugar a cores azuis e rosadas e a traços mais comuns num jovem da cidade. Camo mimética comprada no mercado negro, de gradação militar - “Valeu bem todo o dinheiro.” - pensou. Num gesto singular e protector, guardou o tesouro que trazia consigo no bolso interior do casaco desportivo, e com um andar calmo, cumprindo à risca as instruções da sua cautelosa companheira, o rapaz nos seus 20 desceu a rua e desaguou num mar de gente, jovens na sua maioria, que dançavam e conversavam de copo na mão e folia no rosto.
Não pôde deixar de reflectir em como o Porto havia mudado muito nos últimos anos. Por entre a noite pintada de neons, ainda a gotejar das chuvas do dia, podiam ler-se os nomes de diversos bares e discotecas em letreiros coloridos. “Já não conheço a minha própria cidade… ‘OA’, que bar é este? É bom, Lara? Que dizem as ratings?” - a sua pergunta foi rapidamente respondida no seu ouvido “OA – Orgânicos Artificiais. 4.6 de rating. Especialidades: Synth-brews, licor EPM, tostas-mistas. Música ao vivo duas vezes por semana, mas não hoje. Frequentado maioritariamente por jovens entre os 21 e os 31 anos de idade. Conhecido como hot-spot para modders.”
Tiago sorriu, entrando no estabelecimento. Dirigiu-se prontamente ao bar, e por entre o ruido de fundo gesticulou o suficiente para obter uma synth-brew picante, tal como gostava. Com uma série de movimentos evasivos, por entre a multidão, dirigiu-se à pista de dança, deixando-se envolver pelas luzes e pela música.
Sempre com o cubo preto metálico no seu bolso, encostado ao coração.
* * *
Tiago acordou nessa manhã, com a sua convidada a mordiscar-lhe a orelha. Ainda ensonado virou-se para ela e beijou-a nos lábios. Sem palavras, os dois corpos quentes rebolaram na cama, entrelaçando-se no vinho inebriante do desejo. Exploração penetrante de corpos, calor e suor, cabelo colado. Ofegantes no clímax. Sorriram um para o outro, e a sua colega de cama perguntou por entre os cabelos loiros que se lhe colavam ao rosto “Vamos descansar mais um pouco? Estou cansada. Comi um pão com soja enquanto dormias, acho que se acabou o pão.”
“Não faz mal, raramente como pão. Podes estar à vontade, mas eu tenho de trabalhar. Se precisares de alguma coisa grita.” – respondeu, sorrindo. Vestiu uns boxers e caminhou ainda cambaleante para a cozinha, com o toque em 2 botões obteve prontamente uma caneca quente de café e com ela na mão dirigiu-se para o seu escritório, pegando no casaco deixado no chão e na bracelete pousada na mesa da sala.
Sentou-se na cadeira branca em frente à sua secretária e, tirando o cubo preto de dentro do casaco, preparou-se para a sua tarefa. À sua frente, no tampo metálico atulhado de dispositivos eletrónicos: a chávena de café fumegante, o cubo quase perfeito em preto metalizado que refletia as suas feições distorcidas, a sua bracelete e companheira Lara.
“L.A.R.A., recon mode on.” - exclamou olhando para a bracelete que se iluminou com as suas palavras.
“Light Auxiliary Recon Assistant engaged. Bom dia, Tiago.” – respondeu-lhe a voz automatizada oriunda da bracelete.
“Vamos lá ver o que conseguimos ontem à noite, este foi sem dúvida o trabalho mais misterioso que já me encomendaram.” Pôs os óculos de precisão e com um utensílio metálico que produziu de uma das gavetas da secretária começou a analisar o cubo à sua frente.
Passados momentos soltou um pequeno riso triunfante e, de sorriso nos lábios de gosto ainda temperado pelo sexo de há pouco, pegou no cubo com a mão, contornando com o dedo arestas virtualmente invisíveis. Com um clique a superfície do objeto abriu ligeiramente, revelando um interface familiar a Tiago. “Sou ou não sou bom, Lara?” – não obteve resposta.
Pegou num de vários laptops e ligou-o ao cubo com um cabo que apanhou do chão e deu início à sua jornada. Código voava pelo ecrã. Horas passaram. Ouviu a porta da rua bater, mas não se levantou do seu trabalho. O desespero foi começando a marcar-lhe o rosto, obrigando-o a ir buscar mais café. Na cozinha, junto à máquina de café, encontrou um bilhete «NÃO ME LEMBRO DO TEU NOME, MAS DIVERTI-ME IMENSO E DANÇAS MUITO BEM. FICA COM O MEU NÚMERO VOX-E E VAMOS SAIR OUTRA VEZ UM DIA DESTES. 5483125827 VERA XOXOXO» encolheu os ombros desinteressado, mas guardou o bilhete na gaveta.
Horas continuaram a dar lugar a mais horas, e foi no culminar da sua exaustão que, enquanto esfregava os olhos de cansaço, Tiago teve a epifania do ano. Teclando fervorosamente, conseguiu finalmente dominar o Adamastor que se encontrava à sua frente, e de rosto iluminado viu o ecrã do seu portátil preencher-se com os tesouros guardados no misterioso cubo pelo qual tinha arriscado a vida. “Finalmente! Vamos lá copiar isto tudo, Lara. Tenho de o entregar ao comprador ainda esta noite. E já são… que horas?”
“São dezanove horas, quarenta e três minutos e oito segundos, Tiago.”
“Porra, já devia estar vestido para sair. E queria mesmo saber o que é que isto tinha de…” parou, focado nas palavras que lia no ecrã. Sem desviar o olhar, voltou a sentar-se lentamente. De mão no trackpad, percorreu novamente as páginas de informação que estavam à sua frente. Leu. E depois leu novamente. Voltou atrás e leu mais uma vez. De rosto sem cor virou-se para a sua parceira “Lara… vou precisar de te ligar a este interface, preciso que analises e me digas se estou mesmo a ver o que estou a ver, ok?” – pediu enquanto ligava a bracelete ao portátil.
“Interface detected. Uploading data-collection software. Tiago, tenho que te alertar que são vinte horas, trinta e quatro minutos e vinte-cinco segundos. Probabilidades de conseguires chegar a tempo à marcação que tinhas para as vinte-uma horas: 0%”
“Sim, eu sei, ignora isso. Diz-me o que vês. É mesmo real isso que estou a ler? A origem é fidedigna? Isto é sequer possível?!?” – exclamou desesperando enquanto coçava a cabeça com nervos.
“Análise concluída. A improbabilidade dos dados presentes não contraria a integridade dos mesmos. Não consigo detetar nada que indique que o que vês não é real.” – houve uma pausa no seu discurso de máquina que deu lugar a uma compreensão quase humana - “Mas tu sabes isto, Tiago. Já analisaste profundamente estes documentos.”
Caindo na cadeira, com a realização de algo terrível, Tiago deixou-se abater pelo cansaço e desespero, com as mãos na cabeça ainda olhando fixamente para o ecrã, balbuciou apenas.
“Foda-se… não pode ser…”