episódio 9 - Até que o Céu nos separe III

«-Look! She is doing it again!(1)»; Fernando tira os olhos do prato para seguir o dedo indicador apontado para a janela da cantina. Vê a projeção da criança a caminhar ao fundo no horizonte vermelho distraída e por vezes fazia umas piruetas com os braços estendidos. Pergunta-se a si mesmo se estaria também a cantarolar.
«-What is she doing?(2)»; perguntou outra voz.
«-Should we report?(3)»
Vincent levanta-se deixando o tabuleiro meio cheio esquecido em cima da mesa. Não tinha fome ultimamente, nem vontade de nada. Continua a teimar, para si mesmo, que era acumulação de cansaço, da viagem, da aterragem, da construção da base, o trabalho em excesso a monitorizar cada autônomo, um por um que todos os dias que lhe sugava o ânimo. Que era só isso e nada mais.
«-I need a bath.(4)»; disse enquanto saia da cantina.
«-Is he okay?(5)»

«-Boa noite. Primeira entrada diária. Ontem não gravei nada. Tivemos uma complicação técnica com dois dos autônomos em que pó acumulou-se nos circuitos internos fazendo com que…, bem houve avarias eléctricas como era de esperar. Acabamos as reparações dos autônomos hoje que basicamente consistiu em limpar fio a fio. Hoje estão ambos no terreno e operacionais.»; faz uma pausa a esfregar a nunca ainda húmida. «-A verdade é que não me tem apetecido falar, nem aqui nem com ninguém. Já deve ser saudades de casa, sei lá. Isto parece que os dias são iguais e lá fora é só pó, areia e terreno batido. Sinto falta de café e de…, e de estar lá fora, respirar sem máscara, andar sem fato, ouvir música e ver um filme em casa com…. Enfim, a entidade que identificamos uns dias atrás, é um mindsculpt. A consciência mapeada de uma criança. Diz-se chamar Ofélia. A miúda é simpática, acredito que esteja a criar um modelo VR de Marte para a mãe, ou pelo menos é o que relata. Não consegui de momento ter mais informação, há uma hora estava a passear por fora das estruturas da base a fazer coisas de miúdos, penso eu. Ela não apresenta qualquer perigo ou risco para a missão, nem tem mostrado qualquer interesse no trabalho que se tem feito em campo. A curiosidade que tem é meramente paisagística. Não tem-se manifestado a outros AI nem aparece em qualquer log do complexo. Fiz um rastreio completo nos nossos sistemas e não há qualquer vestígio dela. Honestamente, se outros não a tivessem visto acharia que estava a ter alucinações. E...»; pára de repente de falar para a câmera perplexo.
«-Continua, eu gosto de elogios.»
«-Fogo! Que susto miúda!»
Ela abana a mão na direcção dele como quem indica para continuar.
«- Ofélia encontra-se presente.» sorri.«- Eu, Engenheiro Vaz, responsável pela manutenção dos autônomos e dos AI’s respectivos, fecho a primeira entrada de hoje. E vemo-nos mais tarde, se Deus o quiser.»; dá a palmada habitual na lente virando a câmara de lado:«-Mas que cusca que me saiste!»
«-Olá Fernando! Como tens estado.»
«-Tenho estado.»
«-Isso quer dizer o que?»
«-Quer dizer o que quer dizer.»
«-Ai que os crescidos são esquisitos.»
«-Os crescidos é que são esquisitos?»
«-Sim.»
«-Não sou eu que ando assustar a malta a dançar lá fora sozinha com a própria sombra.»
«-Que tolo, não tenho sombra e se fosses caías pró lado.»
Esfrega a cara onde já sentia a barba por fazer. «- Pois é. Caido e queimado. Tostadinho.»
«-Como uma torrada!»
«-É.»
«-Disse alguma coisa de mal?»
«-Não. Nada. Digamos que conheço uma pessoa que é doidinha por torradas. Não passava um pequeno-almoço sem duas fatias de torradinhas.»
«-Gostavas de voltar a ve-la?»
«-Muito.»
A pequena figura cresceu em altura, delgada e frágil, substituindo o rosto redondo por uma cara pálida oval de olhos grandes castanhos contornados por sobrancelhas grossas desenhadas. O nariz levemente arrebitado salpicado por sardas e a boca vermelho vivo em que o lábio superior era mais saliente que o outro.
«-Ana.»; deixa fugir.
«-Gostas?»
«-Ela cortou o cabelo»; diz enquanto desvia o olhar.
«-Há uns anos.» responde.
«-Até a voz, miúda.»
«-Porque não olhas?»
«-Porque...»; diz sentindo a voz fugir-lhe para o choro.«-Fodasse!»; ainda consegue escapar.
«-Desculpa. A sério, desculpa, pensei que ias gostar.»
«-Isso não se faz…, epá não se faz caramba.»; lamenta, tentando recuperar a compostura.
«-Ficaste chateado? Queres que...»
«-Só mais um pouco, pode ser?»
«-Claro.»
«-Não tinha noção o quanto sentia falta dela. Até da voz.»
«-Eu percebo. Eu tenho saudades do cheesecake que a Dona Alberta fazia lá em casa.»
«-Cheesecake?»
«-Era tão bom! Tinha aquela camadinha doce de amora,sabes? Lambia os dedos todos e ela deixava-me limpar a tigela a dedos, com a mão toda! Sujava-me toda, era um máximo. Mas eu não me lembro do sabor. Só me lembro que adorava. Babava-me toda quando estava fresquinho no frigorífico. Mesmo ali à minha espera. A mãe ralhava-me sempre quando lhe metia os dedos.»
«-É muito doce mas acho que consigo entender.»
«-Não gostas?»
«-Não sou muito dado a doces. A não ser a tarte de maçã que a Ana fazia. Ela punha uma camada de souflé por cima com sabor a limão.»
«-Ainda te lembras do sabor?»
«-Melhor do que me recordava da voz dela.»
«-Eu, no início, quando..., tu sabes,pedia a minha mãe para me trazer uma fatia e não podia. Chorava cada vez que mencionava. Então desisti e tentei criar eu própria, mas não tinha cheiro, nem sabor. Não era a mesma coisa.»
«-Não tens saudades disso? De poder tocar? De sentir as outras pessoas?»
«-Tenho mas ao mesmo tempo não tenho. Posso estar aqui e lá ao mesmo tempo. Posso criar um pôr de sol atrás de pôr de sol e ver cinquenta ou sessenta vezes se me apetecer. Era só virar a cara!»
«-Como vir a Marte, né?»
«-Sim, como vir a Marte também..»
«-Fazes-me lembrar um livro que li há muito, muito tempo atrás.»
«-Qual?»
«-O principezinho. Foi escrito há muito, muito tempo atrás, por um escritor francês.»
«-Oh tolo, conheço! É a minha história favorita.»
«-Também da Ana. E tu pareces o principezinho a passear de planeta a planeta. A falar com estranhos e aprenderes as histórias e as tristezas de cada um.»
«-Pois, e tu ainda não me desenhaste uma ovelha!»




NA: traduções dos diálogos EN para PT:
  1. Olha ela está a fazer aquilo outra vez!
  2. O que estará a fazer?
  3. Deveríamos reportar?
  4. Preciso de um banho.
  5. Ele está bem?



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