episódio 4 - A primeira torrada

«-Merda pá!»; bate com os punhos no volante. Baixa o vidro e olha para fora. Está escuro, e nada se vê. Abre o porta-luvas tirando uma caixa preta com um cabo usb-c pendurado. Abre a porta puxando uma alavanca que solta o capote. Fecha a porta, empurra o capote para trás e liga o pequeno dispositivo. «-Va funca, sua besta!»; nada. Não há luz que se acenda. Vicente olha a sua volta. Estrada e mais estrada sem alma a passar. Está frio, e o carro morreu. Olha para o seu pulso, são 2:03, sem sinal de rede: «-Só, podes estar a brincar!»
Volta ao carro. Senta-se, encosta a cabeça ao volante e olha para a caixa da tostadeira comprada umas horas antes. «-Pára de te rir!»
A caixa não se mexe. Passivamente quieta encostada no lugar do passageiro. «-Mais cedo ou mais tarde, alguém tem que passar por aqui, não achas?» Vicente puxa o banco para trás e reclina as costas. Está cansado, não se lembra da última vez que consegui fechar olho uma noite inteira. «-Fogo, ‘tá frio. E apetecia-me mesmo uma torrada.»; resmunga cruzando os braços contra a barriga.

Desistiu de esperar por uma alma perdida. Estava já a caminha debaixo da noite escura há mais de meia hora. Debaixo do braço carrega a torradeira despida do plástico da garantia. Não lhe apetecia hoje estar sozinho. Chega a um ponto de cruzamento onde repara num poste cor-de-laranja. Aproxima-se e repara num velho modelo de telephone. «- Será que a nossa sorte mudou?» Levanta o auscultador do repouso e ouve uma voz calma do nada: «-Emergências de Portugal, eu sou a Ana, em que posso ajudar?»; espantado, aproxima o auscultador ao ouvido: «-Olá?»
«-Olá, Boa noite, em que posso ajudar?»
«-Eu..., eu sou o Vicente, TAG: LX542034A. Estou a falar com quem?»
«-Ana.»
«-Como é que está Ana?»
«-Eu estou bem. É a primeira pessoa a ligar para a linha nos últimos 3 meses. Passo 8 horas do dia sem falar com ninguém e nem conto fora do trabalho em que a minha vida social é um zero bem redondo. O meu marido partiu para Marte há anos, e o Estado insiste em dizer que sou viúva. Não vejo a minha irmã há meses e mal lhe consigo falar. E veio o meu período hoje e a minha torradeira queimou-se esta manhã. Mas estou bem, não podia estar melhor e o Vicente?»
««-Mal. Estou offline no móvel. Estou com insónias desde que me mataram a minha L.I.A.. A minha mãe quer instalar agora a minha irmã em casa. O meu carro morreu e  estou completamente perdido, sei lá onde, com uma torradeira.» A voz solta uma gargalhada: «-Desculpe, isto não é mesmo nada profissional.»
«-Que se foda o profissionalismo. Eu faz dias que só me apetece mandar toda a gente à merda.»
«-E porque é que não o fez?»
«-Porque fiquei sem rede»; responde a rir. Deixa o corpo cair no chão e encosta as costas contra o poste.«-E a Ana? Já o fez?»
«-Não tenho quem. Verdade é que às vezes só me apetece soltar um berro no meio da rua. Nem sei para quê. Não é que haja alguém que seja culpado de tudo, só que apetecia-me fazer reset.Recomeçar.»; a voz falou num só trago e com uma familiaridade ele sentiu-se confortável só de escutar. «-Vicente?»
«-Sim, Ana?»
«-Que torradeira comprou?»
«-Nem sei.»
«-Porque é que precisou de uma torradeira às 3 da manhã?»
«-Não consigo estar em casa.»
«-Então lembrou-se comer torradas?»
«-Já não como torradas desde que sou cachopo.»
«-Eu gosto. Aproveito o pão do dia anterior. Assim nada se extrage.»
«-Agora quero.»
«-Torradas?»
«-Quentinhas com manteiga a derreter.»
«-E café.»
«-Uí isso é que era obra.»
«-Posso levar o café fresquinho cá do escritório e pão desta manhã se me explicar o que lhe aconteceu com o seu carro.»
«-Esqueci-me do carregar.»
«-Power-bank?»
«-Esqueci-me do carregar.»
«-Ah!»
«-Eu disse que tava a ter um mau dia.»
«-Usb-c?»
«-Um clássico.»
«-Sim, já não se usa.»
«-Eu uso.»
«-Sempre gostei de homem que aprecia o bom vintage. Bem, vou preparar o termo e o powerbank. Vou demorar 20 minutos ai chegar. Realmente está no meio de nada»
«-Tu.»
«-Huh?»
«-Trata-me por tu. Afinal vamos partilhar torradas.»



NA: Edição 23.02.2019 - Correção do nome da personagem Vicente e adição da linha - «-Eu..., eu sou o Vicente, TAG: LX542034A. Estou a falar com quem?»


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