episódio 5 - Ana

São 11.00 da manhã, Ana abre os olhos e fica passiva a olhar para o tecto e quase nem se dá conta que mal consegue respirar. Cada expiração solta-se um pio abafado, moribundo que lhe passa despercebido. O peito exalta-se de cima abaixo escondido nos cobertores; e somente o som longínquo de uma sirene mexe-lhe o corpo de fora da cama.
Ana arrasta os pés para a cozinha. Põe água a ferver. Deita o pouco pó de café instantâneo que sobra para dentro de uma caneca suja ao calhas. Olha para o saco com duas fatias de pão de há dois dias encostado a loiça suja amontoada. Abre o saco. Tem bolor. Desliga a chaleira. Despeja a água na caneca. Vira o nariz entupido para a torradeira e desliga o cabo da tomada, agarrando-a por debaixo do braço e com a outra mão segura na caneca e no telemóvel.
Vai para a casa de banho, poisa a torradeira, o café e o móvel no chão e abre a torneira da banheira e deixa a água correr. Não verifica a temperatura. Senta-se no chão de azulejo partido encostando-se a parede. Pega no telemóvel e digita um número com o polegar.
O barulho ensurdecedor da água consegue quase abafar a voz masculina: «-Olá, não estou de momento disponível mas o meu atendedor de chamadas está, por isso podes falar com ele em vez de falar comigo. Espera pelo sinal.» uma gargalhada segue o final da frase que é interrompida pelo um bip sonoro curto; « - It is not possible for the moment to record your message, please try again later.Thank you»
Deixa o telemóvel cair devagar sobre o colo, e os olhos embaciados são atraídos pelo brilho do anel desarrumado ao pé do lavatório que há anos  não o usa. Volta a olhar para o ecrã salpicado pelas lágrimas, seleciona da lista curta de contactos Mana. Enviar mensagem… e nada escreveu. Em vez disso deixou o móvel escorregar para o azulejo. Tira a camisa de dormir e deixou-se ficar de cuecas. Pega na torradeira, liga-a a tomada. Entra na banheira a segurar de alto o aparelho ligado e com tamanha raiva atira a torradeira para dentro da banheira cheia mas nada acontece. A água já começa a transbordar para o chão. Ana fica a olhar para a torradeira afogada sem perceber porque é que ela ainda está ali, de pé, de  cuecas. Vira a cara para a direção da tomada e constata que a ficha desencaixou-se da parede. Foca-se novamente para a torradeira e repara que das suas pernas fios vermelhos manchavam a água.
«-Puta de sorte.» ; resmunga. Enquanto que do andar de baixo ouve a vizinha a mandar vir com o cão outra vez: «-Mas que cão estúpido! Maldita a hora»; e após três pancadas secas ecoa um ganir longo. Ana desliga a torneira e deixa o ganir do Podengo misturar-se com o choro acumulado.
O apartamento do 3 andar esquerdo, cheirava a limão e menta. Ana tinha passado o dia a limpar o chão encharcado. As compras que fizera após estavam na cozinha ao pé do lavatório agora vazio e limpo. Tinha comprado mais café, pão mas voltou sem torradeira.
Começa o turno às 00:01 acompanhada de um café e uma revista plastificada diante dos monitores que scanam 52,3km raio a sua volta. Estradas, florestas, incidentes dos mais diversos. Hoje em dia era o  raro receber qualquer tipo de chamada sendo que a maioria tinha o seu próprio SiC implementado debaixo da pele ou acompanhado de uma pulseira multifuncional que nunca se despia. O trabalho da Ana era noturno, enfadonho, mal-pago e inútil mas dava-lhe tempo para outras coisas e não era assim tão mau trabalhar do conforto da sua casa.

2:47, o earplug da Ana ativa-se: «-Emergências de Portugal, eu sou a Ana, em que posso ajudar?»; espantado, aproxima o auscultador ao ouvido: «-Olá?»
«-Olá, Boa noite, em que posso ajudar?»
«-Eu..., eu sou o Vicente, TAG: LX542034A. Estou a falar com quem?»
«-Ana.»
«-Como é que está Ana?»
«-Eu estou bem. É a primeira pessoa a ligar para a linha nos últimos 3 meses.»


NA: Edição 23.02.2019 Adicção da plavra "São" na primera linha e do » na última.

Sem comentários:

Enviar um comentário