episódio 1 - Até que o céu nos separe

«- Fui escolhido.»
Não entrou, hoje, em casa a descalçar-se com um sorriso cansado a pergunta-lhe como tinha corrido
o dia como era costume. Simplesmente entrou em silêncio, e sem sequer despir o casaco ou as
botas pesadas, diz: «- Fui escolhido.»
O eco das palavras dele perdiam-se entre o barulho da panela a ferver, a água a escorrer da torneira
e a lâmina da faca a bater secamente na tábua. Ele repete: «- Fui escolhido.»
Ela não se mexe, continua a arranjar o feijão verde. «- Por favor fala. Diz qualquer coisa.»
Ela não se mexe. Ela não consegue dizer nada. Engol de seco e deita calmamente a faca dentro
do lava-loiça. «-Quando?»
«-Em Junho do ano que vem, partimos.»
«-Okay.»
«-Okay?»
«-Sim. Okay.»
«-Eu não vou voltar. É uma viagem sem volta. Isso quer dizer...»
«-Isso quer dizer...»; interrompe. «-Que é oportunidade de uma vida.
É um marco na história. Se fosse eu, também não pensava duas vezes.Ia.»
«-Ias?»
«-Ia!»
«-Não vou voltar, Ana»; repete quase em sussurro.
«-Eu sei.»
«-Eu…, não sei se quero ir.»
«-Queres.»
«-Eu não te quero perder!»
«-É claro que queres.» diz ela em modo quase automático mas a voz fugiu-lhe para quase um berro.
«-Não quero não ter um “nós”.»
«-Eu sei!»; grita a bater com as mãos magras e molhadas contra a pedra da bancada.
Ela puxa um fio de cabelo nervoso para trás da orelha. Os olhos já estam aguados e a voz custa-lhe
a passar para fora da garganta. «-Isto já está mais do que falado!»; força um sorriso. Aquele sorriso
mordido a segurar um choro que mal se aguenta. «-Vais. E vais fazer história. Não há mais nada a
decidir ou discutir! Está decidido.»
«-Eu não quero e quero...» esfrega a mão na testa enquanto o nariz abaixa-se para as botas ainda
calçadas.
«-O jantar está quase pronto.»; vira as costas e enche as mãos trêmulas com as tiras de feijão verde
preparadas que deixa cair na água que já fervia.
«-Não quero que fiques sozinha. Eu não quero ficar sozinho!»; ele não sabe o que diz nem como o
diz.
Ela vira-se repentinamente, o rosto vermelho com a água a lhe escorrer pelo queixo e sai de
rompante da cozinha a correr para a casa de banho. Bate com a porta e o silêncio cai-lhe nos ombros.
Segue a passo lento em direção a porta fechada. Encosta a testa a porta: «-Ana...»
Ouve o vómito a cair para a sanita entre fungos e choro: «-Ana...»
Ana não diz nada, chora. Ele abre a porta devagar. Ela está debruçada com a
cara enterrada nas mãos sobre o tampo da sanita.
«-Ana...»
«-Pára!»

Aproximou-se dela com o passo arrastado e sentou-se por detrás dela abraçando-a.
«-Casa comigo.»
«-Para quê?»
«-Porque eu…, amo-te.»

As 3.45 da madrugada, hora Lisboa, a nave espacial deixou atmosfera terrestre para
sempre. Sem regresso. Um novo capítulo na história da humanidade abre-se neste dia.
48 homens e 18 mulheres selecionados de todos os campos e áreas científicas e engenharias,  
iriam iniciar a jornada da colonização de Marte para nunca mais regressar. Hoje, pela nova lei
aprovada pela União Europeia, o momento que ele abandona o planeta para uma missão de
uma vida, o estatuto civil dela mudará automaticamente, nos registos da autoridade portuguesa
tributária e aduaneira, para viúva. Enquanto via, em directo a nave a rasgar o céu escuro, ouvia-se
as palmas e as aclamações de uma multidão, Ana começa a rir nervosamente tirando para sempre
o anel estreado a uns dias.

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