episódio 12 - Vamos então recapitular

O desconforto do silêncio fora interrompido pelo som metálico da chaleira a bater o chão; «-Como sabes o nome da minha irmã?»; pergunta Ana novamente.
«-Lusitânia?»
«-Lu.»
«-Lu?»
«-Ninguém a trata pelo nome, Vicente. Só Lu.»

«-Vamos então recapitular.»; disse Ana enquanto  acaba de engolir o pedaço de torrada que levou a boca: «-Tu tens uma irmã.»
«-Sim.»
«-Que morreu.»
«-Sim.»
«-E antes de morrer os teus pais copiaram a cabeça de uma criança de nove para dentro de um chip.»
«-Um SiC.»
«-Vicente, é a puta de um chip.»
«-Visto nessa perspectiva, então sim, Ofélia foi copiada para a puta de um chip.»
«-Os teus pais agora, mais precisamente, a tua mãe, Patrícia, e ainda não percebi porquê, quer transferir a tua irmã para esses corpos sintéticos, todos janotas, que vocês chamam de Tábula Rasa.»
«-Certo»
«-Ou então, transferi-la lá para tua casa, em vez, da tua Lia.»
«-Sim.»
«-Que uma namorada.»
«-Ex.»
«-Marta, que apagou o teu AI.»
«-Sim.»
«-E tu, ficaste todo fodido, porque estamos a falar de um AI que alteraste para singularidade nível 5.»
«-Sim.»
«-E só para ter a certeza que entendi isto tudo, tu começaste a alterar a consciência da Lia aos 12 anos, o que, segundo as minhas aulas de história do 11º ano, é ilegal, aliás crime contra a humanidade, modificar a “consciência” a um ser não-biológico. »
«-Sim.»
«-O que é que a tua Lia conseguia fazer?»
«-Sarcasmo. Entendia o conceito de humour. Tinha ao longo dos anos acrescentado, modificado, alterado, codificado mods que tornavam a Lia única. Não havia outra igual.»
«-Mandava piadas?»
«-Lia tinha sensores. Não precisava de introduzir qualquer credencial de acesso para ela me reconhecer. No entanto, cada vez que bebia uns copos a mais ou só porque sim, não iniciava qualquer processo sem que introduzisse o meu tag.»
«-Não seria um glitch? Um mau funcionamento?»
«-Quem me dera! No início também considerei até que notei que não havia padrão, era uma escolha dela. Entende que tinha a Lia desde miúdo. Primeiro esteve instalada no meu quarto. Depois seguiu-me para a faculdade, e acabou no meu apartamento.»
«-A Marta não chegou a pedir-te desculpa?»
«-Chegou. Até queria substituir-me a Lia por outra.»
«-Mas isso era inaceitável. Aquela era a tua Lia.»
«-Sim, era.»
«-Então, a tua irmã disse para falar comigo porque era possível recuperar a Lia.»
«-A Ofélia explicou-me que por nunca ter feito os upgrades obrigatórios da Lia, e que sendo que ela tem mais de vinte anos e tal, todos o meu trabalho estaria ainda salvo algures.»
«-Mas o que a tua irmã queria era instalar a tua Lia para dentro de uma tábula rasa.»
«-Sim, o que acho impossível para ser franco.»
«-Ao que ela te respondeu que era perfeitamente possível, e que a minha irmã seria a resposta para todas estas questões»
«-É isso tudo. Esta é a minha história. Um tolo que perdeu o AI que o acompanhou toda uma vida.»
«-Vicente, eu não sei da Lu. Há meses que estou a tentar contactá-la e simplesmente não sei nada dela.»
«-Sabes do ultimo lugar onde esteve? Onde trabalha? Onde vive? Qualquer coisa?»
«-Nada. a minha irmã vive escondida desde que me lembre. Cortou relações com todos os amigos e família.»
«-A Ofélia deu a entender que pessoas perigosas andavam atrás dela.»
«-Eu sei.»
«-Se calhar podemos ajudá-la.»
«-Não.»
«-Ana.»
«-Vicente, já chega!»
«-Prometi à minha irmã.»
«-E eu prometi à minha!»
«-Ana, qualquer coisa, por favor.»
«-Nem ao Fernando contei.»; Ana desviou o nariz para o prato de porcelana e com o dedo indicador brincava com as migalhas: «-Eu estava a gostar da ideia de ter um amigo. De ter alguém com quem podia barafustar sobre os meus dias.»
«-Não percebo, porque é que isso ia mudar?»
«-Porque não ias conseguir olhar  para mim da mesma forma.»
«-O que é que fizeste assim de tão terrível que não te veria com os mesmos olhos?»
«-Eu não fiz nada Vicente. É mais o que sou.»
«-Explica-me. Sou todo ouvidos»
Ana poisa o prato sobre a pequena mesa de madeira de estar. Desliza o corpo sentado sobre o sofá mais perto do rapaz e pega-lhe no queixo com uma mão enquanto que a outra aponta para a cara.«-Vês?»
«-A tua cara?»
«-Sim.»
«-Não percebo.»
«-Se vires outra igual, então encontraste a Lu.»
«-É a tua irmã gémea?»
«-Não Vicente, a Lu é 40 anos mais velha.»
«-Mas a cara é igual a tua…, mas com rugas.» diz ele enquanto com os dedos desenha riscos no ar para reforçar a confusão óbvia que lhe sobressaem os sobrolhos.
«-Não. Ela é…, melhor, eu sou exactamente a imagem dela.»
«-Plástica?»

«-Clonagem. Eu sou o clone da Lusitânia.»

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