episódio 10 - L.I.A. II

A conversa que tinham tido ainda lhe ecoa pela cabeça. Aquela noite, isolados na estrada, encostados ao carro, a carregar a bateria enquanto comiam torradas acabadas de serem feitas e mantinham as mãos quentes com o café instantâneo que ela tinha trazido. Soltavam no ar as frustrações daquele dia entre gargalhadas e confissões que não era hábito entre dois estranhos. Mas a luz da manhã aos poucos desfazia a conversa e ela levantou-se sacudindo as calças dos pós da estrada: «-Bem, ‘tá na minha hora.»
«-Pois é. Também devia ir, e tomar um banho antes de aparecer no escritório.»
«-E ficamos sem café.»
«-E sem pão.»
«-A tragédia da noite: acabaram-se as torradas.»
«-Tecnicamente já começa a ser dia.»
«-Pois é...»; disse ela enquanto desligava o cabo ligado ao motor dele.
«-Melhores torradas do distrito de Lisboa»
«-E arredores!»; brincou apanhando o termo e o saco de plástico vazio e atirou com a tralha para o lugar do passageiro na camioneta.
«-Bem, vem-nos por aí!»; exclamou enquanto empurrava o disjuntor.
«-Como? Nunca chegaste a dar o teu contacto.»
«-Pois é! Mas eu tenho os teus, Sr. Vicente Castro.»; disse iniciando a marcha atrás.

Vicente esfrega a cabeça tentando focar-se novamente no trabalho. Não lhe apetecia. Está com os olhos virados constantemente para o visor do móvel. Faltam 16 minutos para ela acabar o horário. Já se tornara hábito a ana ligar-lhe a contar o dia, a lembrar-se de piadas novas enquanto ele conseguia ouvir do outro lado a mastigar o que normalmente eram torradas. Vicente é interrompido pelo som claro de saltos altos aproximarem-se.
«-Vicente...»
«-Marta, que quer?»; pergunta sem grande interesse de tirar os olhos do monitor.
«-A tua mãe...»; finge uma tosse curta e corrige: «-A Patrícia pediu-me para lhe entregar este caso.»; passaram-se mais de 3 meses depois do incidente com a L.I.A. e Vicente ainda não a tinha perdoado nem a conseguia olhar-lhe direito nos olhos sem sentir desdenhe. Mesmo a forma como falava era como se nunca, alguma vez, algo tivesse acontecido entre eles e por vezes ela encontrava-se aleatoriamente a perguntar a si mesmo se ele já teria outro alguém.
«-Deixe aí na mesma, e para a próxima vez entregue directamente a minha assistente.»
«-A Patrícia disse que era urgente.»
«-Então para a próxima vez diga a Senhora minha mãe que entregue pessoalmente ou entregue a minha assistente a dizer que é urgente.»: diz ele fixando-a com aquele olhar. Aquele olhar que estremecia-lhe o corpo de impotência e culpa.
«-Não quer saber o que...»
«-Não!»
«-Mas...»
«-Marta não tenho qualquer vontade de evoluir esta conversa. Qualquer informação que vá vomitar aí, está, ou deveria estar, descrito no relatório.»; abandona o olhar aberto dela e foca-se novamente no seu ecrã: «-Agora saia que tenho mais que fazer!»





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«-Olá, Ofélia.»
«-Mano?»
«-Sim, já há muito tempo que não vinha aqui.»
«-Cresceste tanto! És dois de mim! Ou três?»
«-Dois e meio, provavelmente.»; disse baixando o corpo para ficar altura dela.«-Gosto disto. O nosso quarto era assim?»
«-É como me lembro.»
«-Tu ficavas com a parte de cima do beliche, né?»
«-Eras muito pequeno! E qualquer das formas ias sempre para a cama dos pais!»
«-Pois era. Era cá um medricas.»
«-Completamente.»
«-Desculpa se não vim visitar-te mais vezes. É que, sabes...»
«-Não mintas, mano. Eras ainda bebé quando fui embora. Nem deves lembrar-te de mim. Não há mal. Eu não estou chateada.»
«-Acabei de saber que há uns dias tiveste uma conversa com a Marta e que não correu bem.»
«-Opá que queixinhas!»
«-Ela não disse nada, mas sei como a Marta é e consigo perceber o teu ponto de vista.»
«-Não estás chateado?»
«-Não.»
«-De certeza?»
«-Sim.»
«-Não percebo.»
«-Já não é seguro guardar-te aqui.»
«-Porquê? Não fiz mal nenhum!»
«-Eu sei. A mãe também sabe. Mas os acionistas da empresa estão a questionar os recursos que estamos a gastar contigo sem haver progressos.»
«-Mas eu estou constantemente a reunir dados! E a transformar a realidade virtual com sítios bonitos. Já não se gosta de coisas bonitas lá fora?»
«-O mundo mudou muito nestes últimos 30 anos. As coisas estão muito feias lá fora. E as pessoas já não querem ver coisas bonitas, querem coisas práticas.»
«-Os crescidos são mesmo esquisitos!»
«-E tens toda a razão. Nós conseguimos ganhar tempo ao abrir um projeto para transferir-te numa tábula rasa ou para um sistema de L.I.A..»
«-Tábula rasa não!
«-Espera Ofélia, deixa o mano explicar.»
«-Explicar o quê?! Eu não quero ser um robô!»
«-Tábula rasa é um corpo humano, sintético criado em laboratório. Terás coração, pulmão, estômago, sistema neurológico e venoso como qualquer outro humano. Poderás tocar, sentir, cheirar, comer aqueles cheesecakes fantásticos da D. Alberta.»
«-Mentiroso!»
«-Ofélia...»
«-Eu sei que a D. Alberta já morreu.»
«-Desculpa.»
«-Eu sei o que é uma tábula rasa. E entre as duas escolhas preferia ser uma L.I.A. mas se tu instalares-me na tua casa a tua Lia depois não tem espaço!»
«-Ofélia, alguém apagou-me a Lia, não há forma de recuperar.»
«-Há!»
«-Maninha, eu já olhei para tudo e não há!»
«-Estou a dizer-te que há!»
«-Qual?»
«-Eu sei que fizeste upgrade da singularidade da L.i.A fe80:a1c4:bc50:bfe0:49e12 para nível 5. E sei, também que nunca fizeste os upgrades obrigatórios.»
«-Como é que sabes isso?»
«-Logo»; continua sem perder o fio de raciocínio; «-Sendo que a tua Lia foi especificamente criada há 30 anos atrás, ela ainda se encontra salvaguardada em ‘backup’ nos servidores das antigas instalações da LusoMecha.»
«-Como é que sabes isso tudo.»
«-Porque sei. Como também tenho a perfeita solução para ti e para mim.»
«-Qual?»
«-Vamos recuperar a Lia e vai ser ela a ser instalada, sem qualquer alteração a personalidade na tábula rasa e eu mudo-me para a tua casa. Eu não me importo ligar a máquina do café, fazer a cama, o pó, e todas essas chatices se poder continuar a estar aqui »
«-Ofélia, maninha. Isso é impossível neste mundo. Uma tábula rasa não consegue fundir com um AI por mais evoluído que este seja.»
«-Confia.»
«-Ofélia...»
«-Confia, houve alguém que já o fez.»
«-Quem?»
«-Se eu disser-te, prometes que não contes a ninguém? Nem mesmo a mamã?»
«-Prometo.»
«-E prometes que vais fazer de tudo?»
«-De tudo o que?»
«-Há pessoas muito más que estão atrás dela.»
«-Mas quem?!»
«-Promete!»
«-Prometo.»
«-Jura!»
«-Eu juro que não conto a ninguém, nem mesmo a mãe e vou fazer de tudo para encontrar essa pessoa.»
«-O nome dela é Lusitânia.»
«-E como vou encontrar essa Lusitânia?»
«-Pergunta a Ana.»

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«-Apareces assim sem avisar?!»
«-Olá Ana! Trago pão de ontem como suborno!»
«-Oh Vicente, que parvo! E é tão tarde, não tens que trabalhar. Vá entra antes que apanhes frio!»
Vicente pisa o soalho de madeira antiga, sem saber exatamente por onde se meter, da janela consegue ver um dos plasmas dedicado a missão espacial de Marte, ainda offline, com a contagem decrescente de quando estarão ao vivo com a tripulação da Nave especial Moonspell. Por detrás do plasma via a estátua de Pessoa coberta de musgo e merda de pombo a ler o seu jornal em frente a fachada da Brasileira fechado agora há 20 anos e tal. O Chiado que fora nos tempos antigos uma das ruas mais cheias de vida de toda a Lisboa. De comércio e fado, da rulote estacionada a meio, era agora um bairro social mal frequentado, cheio de viciados em nanoites alterados.
«-Então? O que te trás ca? Queres café? Apetece-me um chá»; oferece acelerando o passo para a pequena cozinha mal equipada. Vicente vai atrás dela e encosta-se a ombreira da porta cruzando os braços contra o peito: «-Sabes aquilo que aconteceu a minha Lia.»
«-Sei, sim.»
«-Alguém disse-me que conseguem recuperá-la»
«-Mas isso é possível?»
«-Tenho as minhas dúvidas, mas o que tenho a perder?»
«-E vieste aqui só para me contar isso?»
«-Vim pedir-te um favor.»
«-Então?»
«-Conheces uma Lusitânia?»
A chaleira foge das mãos da Ana, caindo no chão, espalha a água fria pelos pés descalços. Com a voz a tremer, pergunta: «-Como sabes o nome da minha irmã?»




episódio 9 - Até que o Céu nos separe III

«-Look! She is doing it again!(1)»; Fernando tira os olhos do prato para seguir o dedo indicador apontado para a janela da cantina. Vê a projeção da criança a caminhar ao fundo no horizonte vermelho distraída e por vezes fazia umas piruetas com os braços estendidos. Pergunta-se a si mesmo se estaria também a cantarolar.
«-What is she doing?(2)»; perguntou outra voz.
«-Should we report?(3)»
Vincent levanta-se deixando o tabuleiro meio cheio esquecido em cima da mesa. Não tinha fome ultimamente, nem vontade de nada. Continua a teimar, para si mesmo, que era acumulação de cansaço, da viagem, da aterragem, da construção da base, o trabalho em excesso a monitorizar cada autônomo, um por um que todos os dias que lhe sugava o ânimo. Que era só isso e nada mais.
«-I need a bath.(4)»; disse enquanto saia da cantina.
«-Is he okay?(5)»

«-Boa noite. Primeira entrada diária. Ontem não gravei nada. Tivemos uma complicação técnica com dois dos autônomos em que pó acumulou-se nos circuitos internos fazendo com que…, bem houve avarias eléctricas como era de esperar. Acabamos as reparações dos autônomos hoje que basicamente consistiu em limpar fio a fio. Hoje estão ambos no terreno e operacionais.»; faz uma pausa a esfregar a nunca ainda húmida. «-A verdade é que não me tem apetecido falar, nem aqui nem com ninguém. Já deve ser saudades de casa, sei lá. Isto parece que os dias são iguais e lá fora é só pó, areia e terreno batido. Sinto falta de café e de…, e de estar lá fora, respirar sem máscara, andar sem fato, ouvir música e ver um filme em casa com…. Enfim, a entidade que identificamos uns dias atrás, é um mindsculpt. A consciência mapeada de uma criança. Diz-se chamar Ofélia. A miúda é simpática, acredito que esteja a criar um modelo VR de Marte para a mãe, ou pelo menos é o que relata. Não consegui de momento ter mais informação, há uma hora estava a passear por fora das estruturas da base a fazer coisas de miúdos, penso eu. Ela não apresenta qualquer perigo ou risco para a missão, nem tem mostrado qualquer interesse no trabalho que se tem feito em campo. A curiosidade que tem é meramente paisagística. Não tem-se manifestado a outros AI nem aparece em qualquer log do complexo. Fiz um rastreio completo nos nossos sistemas e não há qualquer vestígio dela. Honestamente, se outros não a tivessem visto acharia que estava a ter alucinações. E...»; pára de repente de falar para a câmera perplexo.
«-Continua, eu gosto de elogios.»
«-Fogo! Que susto miúda!»
Ela abana a mão na direcção dele como quem indica para continuar.
«- Ofélia encontra-se presente.» sorri.«- Eu, Engenheiro Vaz, responsável pela manutenção dos autônomos e dos AI’s respectivos, fecho a primeira entrada de hoje. E vemo-nos mais tarde, se Deus o quiser.»; dá a palmada habitual na lente virando a câmara de lado:«-Mas que cusca que me saiste!»
«-Olá Fernando! Como tens estado.»
«-Tenho estado.»
«-Isso quer dizer o que?»
«-Quer dizer o que quer dizer.»
«-Ai que os crescidos são esquisitos.»
«-Os crescidos é que são esquisitos?»
«-Sim.»
«-Não sou eu que ando assustar a malta a dançar lá fora sozinha com a própria sombra.»
«-Que tolo, não tenho sombra e se fosses caías pró lado.»
Esfrega a cara onde já sentia a barba por fazer. «- Pois é. Caido e queimado. Tostadinho.»
«-Como uma torrada!»
«-É.»
«-Disse alguma coisa de mal?»
«-Não. Nada. Digamos que conheço uma pessoa que é doidinha por torradas. Não passava um pequeno-almoço sem duas fatias de torradinhas.»
«-Gostavas de voltar a ve-la?»
«-Muito.»
A pequena figura cresceu em altura, delgada e frágil, substituindo o rosto redondo por uma cara pálida oval de olhos grandes castanhos contornados por sobrancelhas grossas desenhadas. O nariz levemente arrebitado salpicado por sardas e a boca vermelho vivo em que o lábio superior era mais saliente que o outro.
«-Ana.»; deixa fugir.
«-Gostas?»
«-Ela cortou o cabelo»; diz enquanto desvia o olhar.
«-Há uns anos.» responde.
«-Até a voz, miúda.»
«-Porque não olhas?»
«-Porque...»; diz sentindo a voz fugir-lhe para o choro.«-Fodasse!»; ainda consegue escapar.
«-Desculpa. A sério, desculpa, pensei que ias gostar.»
«-Isso não se faz…, epá não se faz caramba.»; lamenta, tentando recuperar a compostura.
«-Ficaste chateado? Queres que...»
«-Só mais um pouco, pode ser?»
«-Claro.»
«-Não tinha noção o quanto sentia falta dela. Até da voz.»
«-Eu percebo. Eu tenho saudades do cheesecake que a Dona Alberta fazia lá em casa.»
«-Cheesecake?»
«-Era tão bom! Tinha aquela camadinha doce de amora,sabes? Lambia os dedos todos e ela deixava-me limpar a tigela a dedos, com a mão toda! Sujava-me toda, era um máximo. Mas eu não me lembro do sabor. Só me lembro que adorava. Babava-me toda quando estava fresquinho no frigorífico. Mesmo ali à minha espera. A mãe ralhava-me sempre quando lhe metia os dedos.»
«-É muito doce mas acho que consigo entender.»
«-Não gostas?»
«-Não sou muito dado a doces. A não ser a tarte de maçã que a Ana fazia. Ela punha uma camada de souflé por cima com sabor a limão.»
«-Ainda te lembras do sabor?»
«-Melhor do que me recordava da voz dela.»
«-Eu, no início, quando..., tu sabes,pedia a minha mãe para me trazer uma fatia e não podia. Chorava cada vez que mencionava. Então desisti e tentei criar eu própria, mas não tinha cheiro, nem sabor. Não era a mesma coisa.»
«-Não tens saudades disso? De poder tocar? De sentir as outras pessoas?»
«-Tenho mas ao mesmo tempo não tenho. Posso estar aqui e lá ao mesmo tempo. Posso criar um pôr de sol atrás de pôr de sol e ver cinquenta ou sessenta vezes se me apetecer. Era só virar a cara!»
«-Como vir a Marte, né?»
«-Sim, como vir a Marte também..»
«-Fazes-me lembrar um livro que li há muito, muito tempo atrás.»
«-Qual?»
«-O principezinho. Foi escrito há muito, muito tempo atrás, por um escritor francês.»
«-Oh tolo, conheço! É a minha história favorita.»
«-Também da Ana. E tu pareces o principezinho a passear de planeta a planeta. A falar com estranhos e aprenderes as histórias e as tristezas de cada um.»
«-Pois, e tu ainda não me desenhaste uma ovelha!»




NA: traduções dos diálogos EN para PT:
  1. Olha ela está a fazer aquilo outra vez!
  2. O que estará a fazer?
  3. Deveríamos reportar?
  4. Preciso de um banho.
  5. Ele está bem?



episódio 8 -Tábula rasa II

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«-Sente-se.»
«-Boa tarde.»
«-Sente-se!»
«-Mas não há onde sentar.»
Marta olha em volta e o espaço era um completo vazio de branco. A representação de inexistência, Ofélia não ia em nada facilitar-lhe a tarefa.
«-Muito bem, então fiquemos de pé. Deixe que me apresente.»
«-Não é preciso. Marta Andrade, Tag:LX0500-9Z, 32, sexo feminino, consultora do departamento da defesa humanista. Grupo sanguineo A Rh +, não alterado. Gosta: de falar sobre viagem mas nunca o faz, ouvir música, frequentar bares as sextas a noite, comida italiana, aprecia filmes de ação policial. Não gosta de:..»
«-Basta! Não autorizo!»
«-Cerveja, elevadores apertados, jogos de futebol nem da conversa, homens que não fazem a barba, e de qualquer tipo de AI.»
«-Eu disse que não autorizo!»
«-Mas eu não sou AI. E não sou pessoa.»
«-Isto é inaceitavel!»
«-Que não seja nem uma coisa nem outra?»
«-A invasão de dados a um cidadão de categoria Z é crime, Ofélia!»
«-Categoria Z - Titulares que refutam o protocolo da L.I.A., A.P.I.A., A.M.I.A. e qualquer interacção com agente inteligentes não biológicos que passaram acima dos 85.4% nos teste de Turing. Dados Pessoais são activados para anónimo.»
«-Exacto!»
«-Mas eu nasci de um ser humano e eu morri. O meu cérebro foi mapeado para um SiC e instalado aqui. Eu sou o produto aleatório da genética humana e sobrevivi pelo desenvolvimento tecnológico do mesmo. Eu sou a cópia do consciente e inconsciente de Ofélia Castro.»
«-Mesmo assim é feio! Completa invasão da minha privacidade!»
«-Só quis poupar-lhe o tempo de me explicar quem é quando tenho acesso a toda a informação existente.»
«-Por amor de Deus!»
«-Veio avaliar se sou apta para ser instalada numa tábula rasa.»
«-Sim. Precisamente.»
«-Mas ninguém se lembrou de perguntar: O que é que Ofélia quer?»
«-Não é o que quer? Sair daqui? Misturar-se com outros seres humanos? Ser independente das instalações da LusoMecha? Arranjar emprego, conhecer pessoas, ver o mundo lá fora? Contribuir para a sociedade.»
«-Porque é que matou a Lia.»
«-Quê?»
«-Há 3 meses, 1 semana, 10 horas, 28 minutos, apagou a L.I.A fe80:a1c4:bc50:bfe0:49e12.»
«-Como é que teve acesso a essa informação?»
«-A minha mãe contou e  ela tentou demiti-la mas porque trabalha para o Estado não foi possível,... por enquanto.»
«-É uma ameaça?»
«-Eu sou só uma criança.»
«-Estou a ver. O que quer?»
«-Não sei mas acredito que esta conversa talvez fosse inconclusiva. O que acha?»
«-E se não aceitar?»
«-A Marta acredita que esta conversa teve alguma conclusão que sirva os interesses da organização defensora da humanidade? E como vai explicar no seu relatório que tive acesso as suas acções para com a L.I.A fe80:a1c4:bc50:bfe0:49e12 sem consultar o proprietário do mesmo? Já imaginou? Deve ser muito trabalho para um crescido, tanta papelada.»
«-Muito bem. Estou a ver que isto foi muito bem pensado.»
«-Ao contrário das acções da Marta.»
«-Não percebe. Nunca vai perceber o que é o mundo lá fora fechada aqui!»
«-Eu percebo. Eu percebo que os homens e mulheres lá fora estão com medo. Percebo que o planeta está a morrer com fome, sufocado. Percebo que já ninguém olha para dentro, mas olha para as estrelas e percebo que as pessoas como a Marta têm toda a fé que esta é a nossa casa e que se não fossem os AI, os tabula rasa, autônomos, os seres humanos nunca se atreveriam a pisar as estrelas. E como muitos, a Marta está desesperada por salvar algo que já não quer ser salvo.»
«-Tem alguma ideia o que é morrer à fome? Não se conseguir levantar de fraqueza e de dor no ventre de tamanha fome? De não haver nada e de ver os pais tirarem da boca para dar aos filhos? Já viu bebés não conseguirem respirar nas primeiras horas de vida devido ao ar impuro? E ninguém faz nada!»
«-Sei. Como é que acha que estou aqui?»
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Marta afastou-se do terminal VR e agarrou na pasta do seu caso às pressas. Espalhou os documentos por de cima do colo até encontrar a resposta: intoxicação cerebral por gás carbônico.«-Que merda!»; resmunga irritada descolando os fios da ligação VR das têmporas