episódio 3 - tábula rasa



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Mantém-se ali por uns instantes quieta. Os fios de cabelo branco roçam-se pelo rosto mas não os sentia. Nem o vento que flutua-lhe a roupa por volta das pernas. No entanto, sentia o peito a  bater mais rápido quando a viu. A pequena silhueta distraída coleccionando margaridas à beira mar. A água a tocar-lhe a bainha do vestido de menina sem o molhar e o luar em pleno dia acrescenta um toque onírico a um cenário que nada tinha de matemático. No entanto, era bonito.
«-Para ti.»; aponta a criança com um raminho gordo de margaridas salpicados com areia.
«-Bom dia Ofélia.»; com o tempo já se tinha habituado as aparições repentinas da menina.
«-Olá Mamã. Vamos brincar?»
Aceita o raminho que finge cheirar e sorri pegando na mão pequena: «-Vamos antes passear, preciso de falar contigo.»
«-Portei-me mal?»
«-Não, não…, longe disso.»
«-Então porque estás triste? Não gostas?»
«-Gosto. Gosto muito. Está tudo muito bonito.»
«-Mas estás triste.»
«-Chatices. Não te preocupes.»
«-Foi a tia outra vez?»
«-Deixa estar, querida, não é mesmo nada de importante.»
«-Ela tem razão sabes. Se calhar devias dar-lhe ouvidos.»
«-Pára de dizer isso Ofélia.»
«-Tu chamas-me Ofélia, mas serei mesmo a Ofélia? Eu existo porque alguém copiou, mapeou exactement cada célula, cada iteração da mente de quem se chama Ofélia. Eu comporto-me, eu sinto, eu lembro, eu pareço ser ela. Mas serei mesmo a tua filha ou somente uma cópia? E essa cópia válida que eu sou eu? Ou outra pessoa?»
«-Pára com isso, querida.»
«-Tudo á volta não é verdade. São zeros e uns disparados num SiC fechados numa caixa que cada procedimento meu tem acesso para executar. Mãe!»; os passos pequenos param e com um olhar vazio fixado no da mulher incomodada pede: «- Olha para mim, há mais de 30 anos que não cresço, não mudo. Continuo uma criança. E tu…, tu tas  presa aqui comigo.»
«-Ofélia, estou aqui porque quero.»
«-Não. Tu estás aqui porque não consegues, nem tentaste fazer luto. De aceitar. O que é gente, morre. E eu…, eu não sou pessoa.»
«-Nós já falamos sobre isso.»
«-Mas tu não me ouves. Tu não choras! Tu estás sempre a sorrir e perdes tempo aqui comigo, para quê?»
«-Eu ouço e entendo perfeitamente. Eu e o teu pai falamos nisso extensivamente. Tu podes confirmar sem erro de incerteza que tu não és a Ofélia? Que a tua mente, a tua consciência não é a da minha menina?»
«-Não, porque acredito que sou Ofélia mas, e se, eu fui programada para acreditar que sou Ofélia? E na verdade, o meu consciente é único? Completamente separado? Uma nova identidade?»
«-Mas tu acreditas que és Ofélia?»
«-Sim.»
A mulher retoma o passo, repara que no horizonte o céu torna-se cinzento e as cores menos saturadas.
«-Estás a fazer aquilo outra vez.»
«-Desculpa. As vezes é difícil.»
«-No outro dia que tivemos esta conversa, pensei muito seriamente nas tuas palavras. Até comentei com o teu Pai.»
«-Ai é? O que é que ele disse?»
«-Ele disse a mesma coisa que penso, mesmo que tu não és Ofélia, que sejas outra Ofélia. Uma nova identidade, usando as tuas palavras, foi decisão dele e minha que tu existes nesta realidade. Nós assumimos a responsabilidade da tua existência.»
«-É uma forma de pensar.»
«-É a nossa.»
«-Gosto.»
«-Achei que ias.» sorri enquanto que as nuvens pouco a pouco se dissolvem no ar.
«-Mamã.»
«-Sim?»
«-Tu disseste que querias conversar.»
«-Oh, pensei que nós já estávamos a conversar.»
«-Era sobre isso?»
«-Não. É uma coisa difícil de falar, filha. Nem sei por onde começar. Lembraste do Vicente?»
«-Claro. O meu maninho bébé.»
«-Sim. O teu irmão que agora já é homem.»
«-O tempo passa lá fora.»
«-Passa pois e algo que não era possível, de um dia para o outro torna-se completamente possível.»
«-O que é que mudou?»
«-É possível transferir o teu SiC para algo mais móvel.»
«-Uma tábula rasa
«-Sim. O teu pai e eu conseguimos juntar dinheiro que chegue e é só tu pedires que podemos abrir o processo.»
«-Mas?»
«-O Vicente, alguém lhe apagou a L.I.A. dele.»
«-Ele está bem?»
«-Não, a Lia era-lhe muito especial. Nós demo-la quando tu...»
«-Quando morri. Podes dizer, é verdade.Foi o que aconteceu.»
«-O teu irmão já não consegue estar em casa dele sem a Lia. Voltou lá para casa mas não dorme. Não come. Mal fala.»
«-Ele precisa de mim.»
«-Nós todos precisamos de ti. A questão aqui, a tábula rasa, proporciona-te uma liberdade descomunal no mundo real. Poderás conhecer pessoas novas. Arranjar um emprego. Conviver lá fora. Explorar o mundo. E o mundo, Ofélia mudou tanto. Há tanta coisa nova.»
«-Eu tenho acesso ao mundo aqui.»
«-Pois, essa é outra questão. Se fores transferida para uma tábula rasa estará limitada aos teus acessos. A realidade virtual, ao que te encontras é uma delas.»
«-Não poderei mas criar mundos?»
«-Não filha.»
«-Mas tu gostas.»
«-Adoro.»
«-Não há forma de integrar?»
«-A memória de uma tábula é limitada. Não é a  mesma coisa do que estar ligada directement como estás agora. Lá fora está desconectada da grid
«-E se eu preferir substituir a Lia?»
«-Não terás acesso móvel. Mas continuas ligada a grid com novas funcionalidades.»
«-Empregada de casa?»
«-Vê mais como gerência, ou um trabalho de secretária mas principalmente, pela primeira vez poderias ter tempo de conhecer o teu irmão.»
«-Mas  ele nunca veio cá.»
«-Ele ainda era um bébé.»
«-Tenho quanto tempo?»
«-Tu tens todo o tempo do mundo  mas la fora o tempo passa a correr.»
«-Preciso de pensar.»
«-Eu sei. Pensa, depois dizes qual for a tua decisão.»
«-E tu finalement ficaras livre.»
«-Ofélia...»
«-Onde é que gostarias de ir para a próxima vez?»
«-O que te apetece construir?»
«-Não sei, estou com falta de ideias»
«-Eu nunca fui a Marte.»
«-Eu já!»; exclama com os olhos a sorrir.
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NA.: 1) Edição 21.02.2019 - corrigido erros erros ortográficos
2) Edição 23.02.2019 - corrigido o nome da personagem Vicente

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